Na ocasião, convém recordar, uma patrulha comandada pelo tenente Ítalo Nunes disparou nada menos que 257 tiros de fuzil na direção do carro em que viajavam o músico Evaldo Rosa, sua mulher, seu sogro, o filho menor do casal e uma amiga – todos a caminho de um chá de bebê. Diante do desespero da família ao constatar que Evaldo fora atingido pela saraivada de balas, Luciano Macedo, um catador de recicláveis que trabalhava no local, correu em socorro das vítimas e também foi morto.
Tão bárbaro foi o crime – revelador da temeridade que é dar às Forças Armadas a missão de servir como polícia em ações de segurança pública – que, em 2021, a Justiça Militar de primeira instância condenou o tenente Nunes a 31 anos e 6 meses de prisão. Seus sete subordinados foram condenados a pena um pouco menor: 28 anos de cadeia cada um. Todos em regime fechado. O advogado dos réus recorreu, alegando que os militares agiram em “legítima defesa”, e o caso chegou ao STM.
Em Brasília, o ministro relator, Carlos Augusto Oliveira, acolheu o argumento da defesa. O ministro votou pela absolvição dos réus pela morte de Evaldo Rosa e pela desclassificação de homicídio doloso para homicídio culposo no caso de Luciano Macedo, o que reduziu drasticamente as penas impostas ao tenente Nunes (3 anos e 7 meses de prisão) e aos seus subordinados (3 anos de prisão) – e todos em regime aberto. O voto do relator foi seguido pelo ministro revisor, José Coêlho Ferreira.
A versão segundo a qual os militares comandados pelo tenente Nunes não tiveram a intenção de matar Evaldo e Luciano chega a ser ofensiva à inteligência alheia, à memória das vítimas e aos sentimentos de seus familiares. Uma tempestade de chumbo na direção de um carro – dos 257 tiros de fuzil, 80 atingiram o veículo – não se presta à advertência nem à defesa, sobretudo quando se sabe que do carro da família não partiu tiro algum.
Evaldo e Luciano, segundo os dois ministros do STM que votaram até agora, foram atingidos no momento em que os militares trocavam tiros com criminosos, após tentarem impedir um assalto. “Infelizmente, durante o embate com os assaltantes, um dos projéteis atingiu o veículo do sr. Evaldo Rosa, causando uma das lesões que pode ter o levado à morte naquele instante”, disse o ministro relator em seu voto. O carro, então, teria parado e uma segunda rajada de balas foi disparada, desta vez matando Luciano Macedo.
A perícia constatou que Evaldo Rosa recebeu nove tiros de fuzil. Mas, para o relator do processo no STM, a causa da morte do músico teria sido o primeiro tiro – disparado, portanto, no contexto da “legítima defesa” durante a suposta retaliação aos assaltantes. Nesse sentido, o magistrado chegou à conclusão que acusar os militares por homicídio doloso seria um “crime impossível”, haja vista que Evaldo já estaria morto quando os militares abriram fogo pela segunda vez e, ao fim e ao cabo, atingiram o catador de recicláveis, sem a intenção de matá-lo.
Roga-se aos demais ministros do STM que revertam esse entendimento que, a um só tempo, desmoraliza a Justiça Militar e impinge mais sofrimento aos familiares das vítimas. Na prática, está-se tratando Evaldo e Luciano como dois azarados. O desdém com que suas vidas foram tratadas por dois ministros da mais alta instância da Justiça Militar se desvela como espécie de punição post mortem, simplesmente por estarem “no lugar errado, na hora errada”.
A prevalecer a impunidade, os brasileiros terão razão de sobra para sentir medo sempre que cruzarem o caminho de uma patrulha de militares.