O papa herda uma Igreja em transformação em um mundo conturbado. Para ser um pontífice da paz numa era de conflitos, precisará dialogar sem abandonar convicções, reformar sem romper

A Igreja que escolheu o americano Robert Prevost para chefiá-la também é diferente da que elegeu o falecido Francisco. Foi o conclave mais global da História. A fé definha no Ocidente, mas cresce no Oriente. Na América Latina, os evangélicos trazem uma visão nova de Cristo, mas também dúvidas e desafios. Conversões florescem na África e Ásia, mas também atritos com ditaduras e o Islã.
O mundo é diferente: conflitos despertam o espectro da guerra mundial; as democracias estão em recessão, as autocracias, em ascensão, o multilateralismo, em descrédito. A economia se desacelera; as populações envelhecem; tecnologias despertam sonhos de empoderamento sobre-humano, mas também o pesadelo da desumanização.
Na Praça São Pedro, em seu primeiro pronunciamento após ser eleito papa, Leão XIV pronunciou dez vezes a palavra “paz”. “Que a paz esteja convosco”, disse, repetindo a saudação do Cristo ressuscitado. “Uma paz desarmada, uma paz desarmadora, humilde e perseverante, que vem de Deus”, e que o papa gostaria que entrasse em nosso “coração”, alcançasse nossas “famílias”, “todas as pessoas, onde quer que estejam”. E disse como cumprirá essa missão: com uma Igreja que “constrói pontes, que dialoga, sempre aberta a receber”, que “caminha”, que busca “sempre a caridade” e “sempre estar próxima, especialmente dos que sofrem”.
Rios de tinta e saliva correrão sobre o perfil do pontífice. Seu pontificado se adaptará ao mundo moderno, ou tentará adaptá-lo? Qual será sua posição ante a causa LGBT, a ordenação de mulheres, a guerra na Ucrânia ou – inevitável – seu conterrâneo Donald Trump?
Perguntas legítimas, desde que não sejam reducionistas. A mídia secular aplica sua régua – conservador versus progressista –, mas os riscos desse achatamento cognitivo são evidentes. Basta olhar para aquele de quem Leão XIV é vicário. Pode-se afirmar que Jesus não era nem reacionário nem revolucionário, mas a pergunta sobre se era conservador ou progressista colapsa tão logo é formulada. Leão XIII, por exemplo, propôs uma doutrina robusta da justiça social, mas criticou o socialismo e o capitalismo; dialogou com a modernidade, mas reavivou a teologia patrística e escolástica. Conservador ou progressista?
A Igreja precisa ser conservadora: ela se vê como depositária de um dom divino. Mas precisa ser progressista, porque esse dom não pode só ser conservado: deve penetrar o mundo, expandir-se sobre ele, transformá-lo. O cristianismo se vê como a síntese de um acontecimento – a encarnação do Deus-homem –, uma promessa – a união de Deus com a humanidade e a criação – e uma missão – a realização dessa promessa pela regeneração pessoal, social e natural.
Prevost tem formação científica, foi missionário, prior agostiniano e próximo a Francisco. Se quer trazer paz a um mundo conturbado, tem formidáveis instrumentos nas mãos. A Igreja Católica é a instituição mais antiga e mais globalizada do planeta – não só seus 1,4 bilhão de fiéis de todas as etnias, classes e culturas, mas as homenagens de líderes religiosos, chefes de Estado e pessoas de todo o mundo no funeral de Francisco são a prova viva.
A Igreja não tem armas nem capital, mas está na melhor posição para dialogar com protestantes e ortodoxos; com judeus e muçulmanos – todos filhos de Abraão e tributários de Moisés. Ela compartilha da fé humanista na dignidade absoluta do ser humano e na fraternidade universal – mas porque crê em um Pai –; compartilha o anseio muçulmano de servir a um Deus absolutamente bom – mas um Deus humano.
Nessa missão, o juízo sobre se Leão XIV – como Francisco e os sucessores de Pedro – será um bom “progressista” ou um bom “conservador” é secundário. O mundo deve julgar se o papa é um bom homem e um bom cristão. O critério foi dado pelo seu mestre: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, ou, em outras palavras, amar como Cristo amou. Se Leão XIV for fiel a esse mandamento, será um bom papa – e o mundo terá um pouco mais de paz.