Modalidades de emenda coletiva e de senadores seguem teto fixo de distribuição, ignorando população, arrecadação e vulnerabilidade social e desequilibrando em 50 vezes a distribuição de recursos; para especialistas, o modelo bagunça planejamento nacional
O governo federal pagou R$ 51,7 bilhões em emendas de senadores e de bancadas estaduais do Congresso entre 2020 e 2024. As duas modalidades destinam o mesmo valor a cada Estado, independentemente do tamanho da população, do grau de vulnerabilidade social, da arrecadação ou de qualquer critério técnico. O resultado, na prática, é uma distorção de até 50 vezes na distribuição dos recursos públicos entre as unidades da federação. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o modelo engessa o orçamento, acirra disparidades regionais e compromete a capacidade de planejamento nacional.
A distorção na distribuição do dinheiro público se mantém ano após ano e fica ainda mais clara quando se considera os extremos. Entre 2020 e 2024, Roraima recebeu, em média, R$ 1.899 por habitante em emendas parlamentares de senadores e bancadas. No mesmo período, São Paulo, o Estado mais populoso do País, ficou com apenas R$ 38 por habitante – uma diferença de 50 vezes. O padrão se repete nos dados mais recentes. Em 2024, o Amapá, com cerca de 700 mil habitantes, recebeu R$ 404 por pessoa. Já a Bahia, com mais de 14 milhões de habitantes e vulnerabilidade semelhante, ficou com apenas R$ 21 por habitante – quase vinte vezes menos. Pará (R$ 25) e Pernambuco (R$ 25), também com grandes demandas sociais, tiveram valores semelhantes.
Por outro lado, unidades federativas como o Distrito Federal (R$ 166) e Mato Grosso do Sul (R$ 198), com menor população e indicadores sociais mais elevados, estão entre as que mais receberam por habitante, superando com folga Estados mais populosos e com condições econômicas e sociais mais críticas.
O levantamento, feito em parceria com a Central das Emendas, considerou duas modalidades: as emendas de bancada, assinadas por parlamentares da mesma unidade da federação com teto anual de cerca de R$ 300 milhões por Estado; e as emendas individuais de senadores, que também seguem um valor fixo por Estado e contribuem para o desequilíbrio. Como cada Estado tem três senadores, todos recebem três cotas iguais, de aproximadamente R$ 44 milhões por ano. As emendas individuais de deputados não foram incluídas, por serem distribuídas conforme o número de cadeiras por Estado e refletirem, ainda que de forma limitada, alguma proporcionalidade populacional.

Para Bruno Bondarovsky, pesquisador da PUC-Rio em gestão pública e responsável pelo desenvolvimento da Central das Emendas, o modelo atual cria uma falsa sensação de justiça ao distribuir valores iguais para Estados com realidades sociais, econômicas e demográficas completamente distintas. O problema, afirma, está na ausência de critérios técnicos como desigualdade social e arrecadação.
“Existe um senso comum de que o modelo atual favorece os Estados mais pobres por repassar a eles mais recursos. Mas isso não acontece”, afirma Bondarovsky. “Quem mais precisa não recebe mais, e quem recebe mais nem sempre está em pior situação.”
A distorção é resultado direto de mudanças aprovadas pelo Congresso nos últimos anos. A partir de 2015, as emendas individuais de senadores passaram a ser obrigatórias. Em 2019, a regra foi ampliada para as emendas de bancada, fixando valores iguais por Estado e consolidando uma lógica de distribuição que ignora desigualdades regionais.
O pesquisador do IDP Humberto Nunes Alencar reforça que o modelo também compromete a racionalidade do orçamento público e enfraquece a lógica de planejamento nacional. Para ele, a fórmula atual ignora completamente a escala das políticas públicas.
“O sistema impede o País de organizar estratégias de médio e longo prazo. O orçamento vira uma colcha de retalhos, em que cada Estado tem garantido um pedaço do bolo, mesmo que isso não reflita a urgência das necessidades locais ou regionais”, afirma.
Um exemplo dessa lógica aparece no caso do Piauí, que tem mais de 3,2 milhões de habitantes, mas recebeu em 2024 praticamente o mesmo volume de recursos pagos desses dois tipos de emenda que o Amapá, com apenas 733 mil habitantes — a despeito de ambos compartilharem marcadores sociais semelhantes. Para Alencar, esse tipo de desequilíbrio mostra como a ausência de parâmetros compromete o uso eficiente do dinheiro público. “Sem mecanismos de correção ou metas de desempenho, a distribuição dos recursos fica vulnerável a pressões de curto prazo e ao uso estratégico das emendas para fins eleitorais ou de barganha política.”
Propostas no Congresso tentam rever modelo de distribuição
No Congresso, são raras as tentativas de rever tanto o modelo das emendas de bancada quanto o das emendas individuais de senadores. Uma das propostas foi apresentada pela deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que propõe dividir metade dos recursos de bancada com base na população de cada Estado, com base nos dados do IBGE. A outra metade continuaria sendo repartida de forma igual entre os entes federativos. A deputada explica que a ideia é tornar a distribuição mais proporcional e aproximar o orçamento das reais necessidades da população.
“As emendas de bancada precisam refletir a realidade dos Estados. Um modelo que ignora diferenças populacionais e sociais perpetua injustiças e distorções. É urgente que o orçamento público seja guiado por critérios técnicos e transparentes”, diz.
A parlamentar critica a ausência de critérios objetivos na distribuição das emendas de bancada e afirma que a fórmula atual ignora indicadores como população, IDH e renda per capita, o que torna a alocação dos recursos públicos falha, arbitrária e distorcida.
“É necessário um esforço legislativo para incluir critérios técnicos e indicadores na distribuição. O atual sistema é ineficiente e politizado. Precisamos de uma reforma estrutural nas emendas de bancada”, completa.
“Não se pode tratar de maneira igual o que é diferente”, afirma. O deputado critica a fragmentação dos repasses em pequenos projetos voltados a atender interesses locais e eleitorais, em detrimento de obras estruturantes com impacto coletivo. “Essa divisão parece atender mais a uma lógica fisiológica do Congresso”, diz.
Para ele, o avanço do poder do Legislativo sobre o Orçamento fortaleceu o centrão e práticas clientelistas. “Não queremos um Parlamento refém do Executivo, mas tampouco o contrário e é o que muitas vezes temos visto acontecer.”