Queda nos homicídios é alento, mas o País segue entre os mais violentos, sob a ameaça crescente das facções. A paz virá da qualificação da polícia, da justiça criminal e das políticas sociais

Além disso, o recuo dos homicídios não significa um arrefecimento generalizado da violência. O suicídio juvenil aumentou 42,7% na última década; as mortes no trânsito crescem, puxadas pelas motocicletas; e as discrepâncias regionais e demográficas persistem. Enquanto São Paulo, por exemplo, teve uma taxa de 6,4 homicídios por 100 mil habitantes – inferior à dos EUA –, Estados do Norte e do Nordeste voltaram a registrar alta. Em 2023, o Amapá registrou 57,4 homicídios por 100 mil habitantes; a Bahia, 43,9.
É verdade que alguns Estados vêm colhendo frutos de políticas públicas que combinam inteligência, repressão e integração entre forças de segurança. São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, por exemplo, têm conseguido, com métodos distintos, manter quedas sistemáticas nas taxas de homicídios. O Espírito Santo reduziu quase a zero os chamados homicídios ocultos integrando sistemas de informação entre polícia e saúde.
Mas nenhum desses avanços será duradouro se o País não enfrentar o fenômeno mais grave do nosso tempo: a expansão e sofisticação do crime organizado. Facções como o PCC e o Comando Vermelho operam como cartéis transnacionais, com conexões internacionais, infiltração política e ramificações no mercado legal, controlando territórios, intervindo em eleições, cooptando servidores, participando de licitações e operando redes de tráfico de drogas, armas, ouro e madeira – muitas vezes sob a fachada de ONGs ou associações civis. Pedaços do Brasil, seja em metrópoles como o Rio de Janeiro, seja em regiões como a Amazônia, estão se transformando em enclaves próximos de narcoestados.
No Norte e no Nordeste, em especial na faixa amazônica, cresce um ecossistema do crime que combina mineração ilegal, tráfico internacional e grilagem com alto poder de fogo. Diante desse quadro funesto, a flutuação das taxas de homicídio muitas vezes reflete não a eficácia do Estado, mas os humores das facções. Tréguas circunstanciais motivam quedas nas mortes, mas disputas por rotas ou mercados podem fazer a violência explodir a qualquer momento.
A resposta deve ser sistêmica. Há bons exemplos no continente. A abordagem de dissuasão focada, testada no México, mostrou que é possível conter a violência letal ao concentrar esforços nos indivíduos e redes mais violentos, ao invés do encarceramento em massa. Em Medellín, o uso combinado de inteligência, inclusão social e urbanismo reduziu significativamente os homicídios. No Brasil, esforços de maior integração federativa, como a PEC da Segurança Pública, são um passo necessário. A proposta de legislação antimáfia, inspirada nos modelos italiano e americano, também representa avanço: ela trata de forma diferenciada organizações infiltradas na estrutura do Estado e fortalece instrumentos de asfixia financeira e cooperação interestadual.
Mas nenhum desses instrumentos funcionará sob os vícios de sempre. À direita, a tentação autoritária que aposta no populismo penal e na truculência. À esquerda, a leniência que reduz o crime a mero sintoma da desigualdade que marca o País. A experiência internacional mostra que repressão eficaz e respeito aos direitos humanos não são incompatíveis – são indispensáveis. Precisamos de uma polícia forte e responsável, Justiça célere e confiável e políticas sociais que ampliem oportunidades e enfraqueçam o apelo do crime.
O copo não está “meio cheio”. Está menos vazio, mas ainda longe de saciar a sede de paz dos brasileiros. A redução dos homicídios é real, mas frágil. Celebrá-la é justo; acomodar-se diante dela, irresponsável. A civilidade só virá com vigilância, inteligência e coragem política para enfrentar os verdadeiros donos da violência no Brasil.