
Ramagem é o único parlamentar réu na ação da trama golpista de 2022. Mas o deputado bolsonarista foi só o pretexto da iniciativa destinada a favorecê-lo. O que se pretendeu na verdade foi abrir brecha para tentar atingir todo o processo relativo à intentona golpista frustrada e, com isso, beneficiar também o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros réus. A parcela da Câmara que ajudou a aprovar a resolução sabe, no entanto, que ela não se sustenta diante do que diz a Constituição e o STF. Por isso, a única motivação dos parlamentares é provocar os ministros do Supremo e compor o arsenal de vitimização dos liberticidas.
Consagrado na teoria da separação dos Poderes, o sistema de freios e contrapesos nunca foi tão importante e ao mesmo tempo tão frágil no Brasil. Nele se sustenta a ideia de que Legislativo, Executivo e Judiciário terão mecanismos para evitar que um dos Poderes esteja acima dos demais. O problema é que, por aqui, os Poderes costumam abusar de suas prerrogativas a pretexto de que precisam conter os abusos de outro Poder. Ou seja, cria-se um círculo vicioso de extrapolação de competências e de confronto, muito longe do modelo harmônico inscrito na Constituição.
Um STF insatisfeito com a suposta inércia do Congresso avança sobre pautas legislativas. O Congresso, reagindo a esse erro, responde com outros, embutindo matérias na Constituição ou promovendo sua própria interpretação da lei. Enquanto isso, o mesmo Congresso acumula poderes sobre o Orçamento, avançando em prerrogativas que seriam do Executivo. Este, por sua vez, busca nos ministros togados o apoio que lhe falta no Congresso. A aprovação, pela Câmara, de um projeto que se presta a livrar da cadeia um bando de golpistas é parte dessa disfuncionalidade – para a qual o Supremo, enfatize-se, colabora decisivamente, ao julgar réus sem foro por prerrogativa de função e ao conduzir processos e investigações intermináveis a pretexto de salvar a democracia.
No dia 24 de abril, o ministro Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma do STF, enviou ofício à Câmara, destacando a competência dos deputados para analisar apenas os crimes que Ramagem teria cometido após a diplomação, e somente em relação ao parlamentar. Foi esse o entendimento do STF para o artigo 53 da Constituição. Zanin reforçou também o que diz a súmula 245 do Supremo, na qual se define que a imunidade parlamentar não pode ser estendida a outros réus na mesma ação penal, não beneficiando, portanto, Bolsonaro e seus ex-ministros. Com isso, a Câmara poderia suspender apenas dois dos crimes atribuídos a Ramagem na ação penal – justamente aqueles ocorridos em 8 de janeiro de 2023. E decididamente não poderia se intrometer no andamento da ação contra outros réus.
O texto aprovado pela Câmara, no entanto, ignora tais entendimentos e o aviso prévio do STF. Os deputados sabiam que a decisão seria inócua e objeto de revisão pelos ministros da Corte. No cálculo oportunista dos bolsonaristas e daqueles acostumados a arquitetar vinganças contra o Supremo, é exatamente isso o que se busca: provocam o STF a reagir, realimentando o discurso bolsonarista de que se está diante de um processo arbitrário, destinado a tirar Jair Bolsonaro das urnas em 2026 – a narrativa preferencial da habitual vitimização do ex-presidente.
Resta ao Brasil perceber a inutilidade da esperteza bolsonarista, e ao Supremo, assumir o ônus de contê-la mais uma vez.